Por que a luta pelo Direito à Cidade só é genuína se antirracista? Raça, gênero e classe nas desigualdades urbanas.
Por Jéssica Tavares
Você já se perguntou onde e como vivem as mulheres negras nas cidades? Qual a cor das pessoas que moram em favelas e cortiços? Quem são as pessoas que mais dependem dos serviços públicos de transporte, saúde, educação? Quem são as principais vítimas das violências urbanas, de gênero e de LGBTfobia? Seja por parte do Estado, ou de civis?
O Direito à Cidade está na moda. Seja para reivindicá-lo, seja para fazer coro de que este é um privilégio de homens héteros brancos. Mas o que eu, mulher negra, tenho a ver com isso?
Historicamente, o Direito à Cidade foi construído em uma perspectiva anticapitalista, se opondo ao fato de que o dinheiro é o fator determinante para ditar a nossa qualidade de vida nas cidades brasileiras. Ou seja, o Direito à Cidade atuou na contramão de transformar o seu direito em mercadoria. Mas nem faz tanto tempo que ganhou força a concepção da cidade como um bem comum e, consequentemente um direito de todos, que por si só ofereça bens e serviços de forma democrática e justa.
A mercantilização das cidades, que basicamente significa ou você compra, ou você não tem, é em si bastante perversa e acarreta em barreiras sociais quase intransponíveis. Como por exemplo, onde e como morar. As condições de moradia no Brasil são extremamente precárias para a maior parte da população, sobretudo para a negra, que foi empurrada para as margens das cidades em um projeto de urbanização racista e excludente. É importante compreender a centralidade da moradia em nossas vidas, porque via de regra ela atua como porta de entrada para outros direitos. Quem não tem lugar, não é privado apenas do teto, mas também de uma localização, de um endereço, que nos possibilita a mínima condição da vida cidadã. O onde, também é tão importante quanto em quais condições moramos, em um contexto que a nossa localização nos deixa mais distantes ou mais próximos da realização de sonhos.
Além da moradia, as condições de mobilidade, o acesso aos equipamentos de educação, saúde pública, lazer e cultura, saneamento, e a ocupação dos espaços públicos também são determinantes para ditar o que você pode ou não fazer com o seu tempo. Parece até complexo demais conectar tudo isso, mas na realidade, acho que muitas mulheres negras possuem memórias do que não tiveram acesso pela violação do Direito à Cidade.
Quando eu era pequena, minha mãe me alertava para tomar muito cuidado ao brincar na rua porque nós não tínhamos dinheiro para pegar ônibus para ir ao médico, caso eu me machucasse. Pode parecer um problema de planejamento financeiro/familiar, mas na verdade a denúncia é que a mobilidade para alguns é barreira e não uma ponte, e que os equipamentos públicos, como postos de saúde e escolas, não estão concentrados onde as mulheres negras estão.
Também me lembro de que as velhinhas da favela tinham quase sempre os mesmos problemas respiratórios. Anos depois, descobri que as doenças das velhinhas tinham mais a ver com anos e anos morando em casas com muita umidade, pouca ventilação, combinadas com descidas e subidas cotidianas em terrenos íngremes, e horas e horas para chegar no trabalho, do que apenas com o fato de serem velhinhas.
Para muitos de nós negros, isso nunca foi um grande mistério, porque aprendemos política urbana vivendo. No entanto, apesar de algumas coisas parecerem óbvias, elas são complexas, profundas e por muito tempo foram desconsideradas, como por exemplo, a compreensão interseccional das desigualdades. Basicamente isso significa compreender que as pessoas vivem as mazelas da violação do Direito à Cidade diferentemente de acordo com sua raça, gênero e classe.
Olhar para os territórios e enxergar sujeitos que vivenciam as desigualdades urbanas de formas desiguais é uma potência no fortalecimento de uma política urbana justa. Histórica e institucionalmente o Brasil tem dívidas com as mulheres negras e são muitos os passos para avançar nesse sentido. No que tange o desenvolvimento urbano, é preciso compreender que o capital não é a única nem a maior força opressora sobre nossas vidas – somos, antes, atravessadas por violências de raça e de gênero. As políticas e práticas anti-patriarcais e antirracistas devem ser, portanto, valores estruturantes do Planejamento Urbano que tenha, de fato, como perspectiva a cidade como um bem comum. Não existe Direito à Cidade genuíno que não seja anti racista porque não existe bem comum que não seja de fato para TODAS.
Estamos dando os primeiros passos para assumir que as mulheres negras são o grupo mais vulnerável em termos de acesso e para encarar e transformar essa realidade. Para a conquista do Direito à Cidade, precisamos contar as histórias apagadas e transformar as consciências para gerar práticas descolonizadoras.
Nessa perspectiva precisamos atuar considerando as muitas reparações históricas urgentes, entre elas está o resgate da memória de um Brasil em que a historiografia não conta, que é de resistência e liderança de mulheres negras neste e por este país.
Dia 25 de Julho é o dia nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, líder quilombola que resistiu por mais de 20 anos aos ataques da coroa, na região de Mato Grosso, onde hoje é a atual cidade de Cuiabá. O quilombo de Quariterê, além de possuir seu próprio parlamento de processos decisórios, era autossustentável, praticando atividades de cultivo de algodão e tecido. Tereza e o Quilombo resistiram até meados de 1770, onde viveram livres mais de 100 quilombolas, entre negros e indígenas num território construído como um bem comum para todos.
Saudamos sua memória.
Que histórias as cidades não contam?
Jéssica Tavares é formada em políticas públicas e pesquisadora do Instituto Pólis.
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