O Ranking deficiente da Folha
“A Folha desinforma ao procurar associar a ineficiência da maioria dos prefeitos do período 2012-2016, com base em “dados objetivos, portanto isentos” do… Censo de 2010!”
Por Jorge Kayano*
A Folha de S. Paulo divulgou no último dia 27 de agosto uma série especial de matérias sobre seu Ranking de Eficiência dos Municípios (REM-F). “Uma experiência do Instituto Pólis, lançada nos anos 1990, inspira o conceito”, diz uma das notícias. Se falam da publicação “Como reconhecer um bom governo”, publicada em 1995, parece-me que se inspiraram pelo inverso do que sugere o estudo. Pelos critérios de análise do REM-F, a grande maioria (76%) dos municípios brasileiros é rotulada como “não eficiente no uso dos seus recursos para as áreas básicas de educação, saúde e saneamento”. O mínimo que se pode dizer sobre isso é que a Folha está passando por cima de qualquer cautela para divulgar suas teses preconcebidas sobre o que significa ser eficiente na gestão pública.
Em pleno período eleitoral a Folha desinforma ao procurar associar a ineficiência da maioria dos prefeitos do período 2012-2016, com base em “dados objetivos, portanto isentos” do… Censo de 2010!
Dados de um determinado ano, como 2010, mostram apenas um retrato que reflete os investimentos passados. Quando alguém pretende medir o desempenho, a “eficiência” dos atuais governantes, deveria analisar a variação dos indicadores, comparando, por exemplo, o último ano da gestão anterior (2012) com dados mais recentes. Este é o princípio básico das leis de metas que vêm sendo aprovadas em número crescente de municípios: no primeiro ano, o prefeito deve apresentar as metas que procurará atingir durante os seus quatro anos de gestão, para que a sociedade possa acompanhá-las e avaliá-las.
Pela própria definição da Folha, o REM-F “quantifica o cumprimento de funções básicas do município, previstas em lei, segundo os recursos disponíveis”. Para tanto, ele é composto, no numerador, por três conjuntos de indicadores – de educação, de saúde e de saneamento, e um indicador de receita municipal per capita no denominador.
A Folha poderia com facilidade ter levantado dados mais recentes, por exemplo, o número de matrículas escolares, que tivessem alguma relação com o desempenho dos atuais prefeitos. Mas parece que preferiu apostar na desatenção dos seus leitores para tais “detalhes menores”. A única variação apresentada foi a do número de servidores municipais, mas este dado nem faz parte do ranking. Ele só é usado para “provar” que os municípios que contrataram mais nos últimos 10 anos foram mais ineficientes. Como se o número inicial deles não importasse: para a Folha, todo crescimento do número de servidores é sinônimo de clientelismo, portanto é ineficiente e desperdício por definição.
Outros “detalhes menores” também foram ignorados. Por exemplo, pode-se perguntar: até que ponto o número de médicos numa cidade reflete alguma eficiência do governo local? Observamos que Borá, com 834 habitantes, e Águas de São Pedro, com 3 mil habitantes, ambos paulistas, contam com o maior número de médicos em todo o país – 7,2 para cada mil habitantes. Isto ocorre porque todo o estado conta com muitos médicos, que transitam por vários municípios, mas residem em cidades maiores. Por outro lado, mais de 4 mil municípios têm menos de um médico por mil habitantes. São regiões extensas com poucos médicos, portanto mesmo que um município se disponha a pagar salários atraentes, não há médicos na região para ocupar as vagas. E veja-se que nos últimos anos só ocorreu alguma melhora na distribuição de médicos graças ao “Mais Médicos”. Por este motivo, a atual gestão federal tem muito receio de dispensar os médicos cubanos.
Quanto aos dados consolidados do REM-F, chama a atenção que, apesar de a metodologia prever a possibilidade de o índice sintético variar de zero a um, a maior nota observada foi 0,656. Portanto, aqueles 24% dos municípios do total de mais de cinco mil, chamados de “eficientes”, tiveram na verdade notas entre 0,5 e 0,656 – valores que em geral poderiam ser vistos como notas sofríveis ou apenas razoáveis. Isto contrasta com o Índice de Desenvolvimento Humano do PNUD, com vários países – ou municípios, no caso do IDH-M – apresentando IDHs de 0,800 ou mais, e são categorizados como de alto desenvolvimento humano. No índice da Folha, as notas são deliberadamente comprimidas para baixo, com a maior parte dos municípios com notas beirando zero.
Diante da conjuntura atual, os “bons” candidatos devem prometer que serão capazes de entregar cada vez mais serviços, mesmo assumindo num contexto de queda acentuada dos recursos. Não vão correr atrás de transferências estaduais ou da União, já que o Estado precisa garantir sobra crescente de receitas para o pagamento dos juros da dívida, e não cobrarão mais IPTU ou ISS. Para a Folha, o município mais eficiente é aquele capaz de cortar o maior número de gastos e ainda assim conseguir oferecer serviços, independente de sua qualidade. Mais crianças nas escolas, mesmo que sem professores, funcionários ou merendas; quem quiser uma escola de qualidade, que migre para a rede privada.
Procuramos saber como o REM-F foi calculado para produzir aqueles resultados “comprimidos para baixo”, mas não obtivemos a resposta. No entanto, para uma série de reportagens que fala o tempo todo de eficiência, estes resultados não podem ser gratuitos. E parece que a Folha está apontando, sem assumir abertamente, que hoje nenhum município merece ser chamado de “altamente eficiente”. Ao contrário, está propagando a “boa nova” de que nas eleições deste ano teremos um “modelo ideal” de candidatos, em estreita consonância com esta nova era pós-impeachment e de ajustes no estilo PEC 241, que pretende reduzir ao extremo os investimentos nas áreas sociais nos próximos 20 anos.
Nesta mesma linha, deverão apontar para a privatização ou para PPPs no saneamento e para os planos privados populares na saúde… e estes candidatos serão apoiados pela Folha, que agora demonstrou “cientificamente” que no REM-F existe um espaço nobre a ser ocupado por estes futuros governantes.
O estudo “inspirador” do índice tem uma construção da linguagem de indicadores diametralmente oposta à do índice do jornal. A lógica apresentada pelo Pólis é contribuir para o estabelecimento de prioridades e metas e permitir não só o aumento da eficácia das administrações, mas também o estabelecimento de critérios de cobrança por parte da sociedade. Os indicadores devem servir para aumentar a transparência da gestão e facilitar o diálogo entre os mais diversos grupos sociais organizados, e não serem selecionados tendenciosamente para enviesar o índice.
Cabe um alerta final para os eleitores, já que os conteúdos das campanhas de vários candidatos giram em torno deste verdadeiro mantra, da austeridade e da eficiência, que as reportagens da Folha procuram consolidar. Veremos em breve se o REM-F terá o sucesso almejado, ou se será devidamente contestado pelo que é: um Ranking Deficiente.
*Jorge Kayano é pesquisador e diretor executivo do Instituto Pólis
Foto: Reprodução/Folha de S. Paulo
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