JUVENTUDE – I Encontro Nacional do Projeto Jovens Mulheres Negras acontece em Brasília
Cerca de 40 jovens do projeto Jovens Mulheres Negras Contra o Racismo e o Sexismo participarão até domingo (30) das atividades do Festival Latinidades.
“Aqui, a gente cata.
Aqui a gente cata um, cata três, cata quatro, cata cinco, a gente cata todo dia, toda hora.
De manhã, meio dia, de tarde e de noite, de madrugada, a gente cata.
Não somos a cidade planejada, somos o resto de quem não planejou.”
Com a poesia* de Dyarley Viana, assessora política do Inesc, e a ocupação de dezenas de jovens negras na cidade Estrutural, começou o primeiro encontro nacional do projeto “Mulheres negras fortalecidas na luta contra o racismo e o sexismo”, iniciativa nacional implementada em conjunto por Oxfam Brasil Site externo, Criola Site externo, Ação Educativa, FASE Site externo, IBASE Site externo, INESC Site externo e Instituto Pólis Site externo.
Em parceria com o Festival Latinidades e o Coletivo da Cidade, o projeto promoveu o Papo Preto e Periférico no Dia Internacional da Mulher Negra Latina e Caribenha nesta região que é conhecida nacionalmente por ter o maior lixão a céu aberto da América Latina.
“Essa é a cidade mais negra do DF, a cidade com maior percentual de homens e mulheres negras do DF. É uma cidade que sofre muito com o estigma de ser lida como o lixão da cidade, o lixão da Estrutural. Entende por que é vital realizar esse evento aqui? Brasília foi desenhada para que a população negra não a ocupe, foi feita no modelo casa grande e senzala. Levamos o debate racial e do direitos das mulheres, acessando desde as mais jovens às mais velhas, neste chão que sempre foi marginalizado”, afirma Dyarley Viana, assessora do Inesc.
A atividade contou com roda de conversa sobre a defesa de direitos e a desigualdade enfrentada por mulheres negras e periféricas, participaram do debate Lúcia Xavier, coordenadora da ONG Criola, a rapper Preta Rara e a mestre em cultura popular Martinha do Coco.
“Meu sonho era ser recepcionista de clínica dentária, achava as roupas brancas bonitas, enfim, gostava daquele universo. Mas não demorou muito para entender que se pede currículo e boa aparência, essa aparência nunca é preta e assim, fui empregada doméstica por sete anos. O trabalho doméstico ainda é quase hereditário para as mulheres negras”, afirma Preta Rara, ao recordar sua trajetória antes de se tornar cantora e historiadora.
Ao partilhar sua experiência, Preta Rara retomou o processo de construção de sua página nas redes sociais, #EuEmpregadaDoméstica, que ficou conhecida internacionalmente por revelar o cotidiano de opressão e desigualdades enfrentado por essas profissionais. “Muitas patroas me diziam que não seria ninguém na vida, outras que como minha mãe, minha tia, minhas irmãs, tinha nascido para servir. E é essa história que se repete em nossas vidas por conta do racismo”, destaca.
Lucia Xavier explicou que o trabalho doméstico desponta como um lugar em que ainda encontramos muitas mulheres negras por conta de um entendimento da sociedade sobre os lugares de subalternidade a serem ocupados pela população negra.
“Sabemos que o lugar designado pelo racismo nos atribui uma condição de ‘menor’ humanidade e capacidade intelectual, só que é preciso que fique nítido que nós não somos mulheres que temos problemas de saúde ou morremos na hora do parto porque não temos nos esforçado o suficiente. Nós não somos mulheres que não alcançamos postos de poder ou melhores cargos na sociedade porque não temos estudado o suficiente. Nós não temos uma vida digna porque não temos feito por merecer, ao contrário, é porque nós carregamos um país inteiro. É do esforço de mulheres negras, é do nosso sangue que construíram essa nação”, conclui.
Martinha do Coco – que de empregada doméstica e gari nas ruas de Brasília, conquistou o país com a cultura popular negra – aponta para os horizontes possíveis de transformação. “A luta, o conhecimento e o querer são as bases dos sonhos, dos sonhos por dias melhores. Eu sonho todo dia e o sonho não vem sem luta, por isso sonho nunca parar de lutar por dias melhores, pela minha liberdade”.
Finalizando o dia de atividades, o público pôde conferir o encontro inédito entre a rapper Preta Rara e a cantora Martinha do Coco, além de apresentações de muitas artistas que integram o projeto Jovens Mulheres Negras, como Ellen Nzinga, uma das articuladoras da iniciativa no Rio de Janeiro.
Ocupação da Ocupação no Teatro Dulcina de Moraes
Na tarde de quarta-feira (26), as jovens articularam o processo de cobertura colaborativa do Festival Latinidades e participaram de uma oficina sobre a história de luta das mulheres negras liderada por Mônica Oliveira, assessora política da Fase-PE e articuladora do projeto em Recife.
Segundo Mônica, a oficina tinha como objetivo traçar a trajetória histórica das mulheres negras no Brasil, de uma forma em que as participantes do projeto se sentissem parte dessas histórias e próximas dessas personagens.
“Eu acho que a oficina cumpriu seu objetivo, a forma como as meninas reagiram ao contato com essas mulheres, estabelecendo uma relação com todas, foi muito lindo, foi muito emocionante. Mostramos que a nossa ancestralidade caminha conosco, está presente em nossa luta hoje, no nosso trabalho, na periferia, na universidade, nas organizações. Enfim, essas ancestrais estão conosco, a luta delas continua a partir da gente”, comenta.
A atividade aconteceu no Teatro Dulcina de Moraes, um dos polos de resistência artística de Brasília. Ocupado em 2016 por artistas, produtores e estudantes, que fundaram o Movimento Dulcina Vive, o espaço tem acolhido inúmeros coletivos para encontros e reuniões, além de oferecer ampla programação cultural independente à comunidade.
#HubDasPretas: presença no #Latinidades10Anos
Cerca de 40 jovens do projeto Jovens Mulheres Negras Contra o Racismo e o Sexismo participarão até domingo (30) das atividades do Festival Latinidades. Integrando a cobertura colaborativa do evento, as participantes pretendem construir um registro para partilhar essa vivência nos quatro estados (Brasília, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo) que participam da iniciativa.
“A importância do Hub das Pretas, junto com a Rede de Ciberativistas, de estar nesse momento em Brasília participando do Festival Latinidades 10 anos é muito grande. Essas jovens mulheres negras trazem suas pautas de luta, suas pautas políticas das periferias e favelas, e vão conseguir disseminar isso para outras lideranças o que adquire uma amplitude nacional. Isso é o que a gente chama de conectar global e localmente, fazer com que essas lutas não sejam lutas isoladas, renovando numa perspectiva coletiva as formas de fazer incidência política em momentos de crise como esse que estamos vivendo aqui no país e na região”, ressalta Tauá Lourenço Pires, assessora política da Oxfam Brasil e coordenadora nacional do projeto.
Estão previstos ainda intercâmbios entre os hubs e a construção de ações de incidência com a Rede de Ciberativistas de Mulheres Negras. Acompanhe a cobertura colaborativa do festival em nossos canais e siga a hashtag #HubDasPretas.
+ Confira a poesia de Dyarley Viana na íntegra:
A cidade mais negra do DF é a Estrutural.
O maior lixão do mundo a céu aberto é na cidade Estrutural.
A cidade com o maior percentual de mulheres é a Estrutural
A cidade com um dos maiores percentuais de crianças e adolescentes também é a EstruturalA Estrutural para quem visita Brasília são apenas dados, um monte de lixo, um monte de gente, gente preta.
Mulher preta, pobre preto, criança preta, vida preta, cidade preta, o tempo todo tudo é preto.A cor que a gente mais usa é o preto
Os eventos que a gente mais vai são velórios
E ainda assim a gente nasce todos os dias, todas as horas, naquilo que às asas escapa, naquilo que não entra no eixo, naquilo que não cabe no Cruzeiro, no Guará.Aqui, a gente cata.
Aqui a gente cata um, cata três, cata quatro, cata cinco, a gente cata todo dia, toda hora, de manhã, meio dia, de tarde e de noite, de madrugada, a gente cata.
Não somos a cidade planejada, somos o resto de quem não planejou.Agora pasmem senhores: o seu resto floresceu, resistiu e existiu.
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A cidade mais estigmatizada, que mais sofre preconceito, a cidade mais feia do DF é a Estrutural.
Nós não estávamos no sonho de JK
Niemeyer não riscou os nossos traços
Os nossos traços vêm de longe, vem do quilombo, vem do norte e vem do nordesteA gente cata, fazer o que?
E foi catando, pedacinho por pedacinho, que a gente chegou aqui.*Fonte : Ação Educativa
*Fotos: Isabela Alves