Habitat III e o Direito à Cidade, por Nelson Saule Júnior

Urbanismo, O que é Direito à Cidade?, Reforma Urbana
10 de novembro de 2016

Diretor do Pólis fala sobre suas impressões sobre a Conferência da ONU, a Nova Agenda Urbana e os passos para implementá-la

Entre os dias 17 e 20 de outubro aconteceu a Habitat III, a terceira Conferência das Nações Unidas sobre Moradia e Desenvolvimento Urbano Sustentável, realizada em Quito, no Equador, onde foi lançada a Nova Agenda Urbana (NAU). Nelson Saule Júnior, coordenador da área de Direito à Cidade, representou o Instituto Pólis na Conferência por meio da Plataforma Global Pelo Direito à Cidade.

A Habitat III vem em um contexto em que 54% da população mundial vive em cidades e que, segundo as Nações Unidas, tal percentual subirá para 66% na metade do século. De acordo com relatório da ONU-Habitat, em 2030, 80% do PIB global será produzido pelas cidades.

Para Nelson, a grande novidade dessa Conferência é a adoção do Direito à Cidade pela NAU, o que significa um avanço na construção de políticas públicas urbanas para as próximas gerações. O Direito à Cidade é um direito coletivo afirmando elementos importantes para uma democracia, como a “importância dos direitos humanos dentro do território, de áreas urbanas e rurais, da questão de gênero, dos espaços públicos, da função social das cidades, da diversidade cultural, da participação política”.

Em entrevista, Nelson conta sobre suas percepções e o papel do Instituto Pólis em uma das maiores conferências sobre a questão urbana do mundo. Confira:

Quais discussões você percebeu que estavam mais presentes na Habitat III?

NS: A Conferência deu ênfase em como desenvolver e implementar os compromissos que foram estabelecidos na Nova Agenda Urbana. Isso principalmente com relação a financiamento, desenvolvimento das ações, monitoramento e como os governos deverão dar início à implementação da NAU.

Mas também houve espaço para afirmar alguns assuntos considerados relevantes que deveriam ser prioridades da Nova Agenda Urbana. Houve, inclusive, as Assembleias Gerais dos governos locais, das juventudes, das mulheres, dos parlamentares, as quais apresentaram suas declarações e leituras do que é mais importante dentro de cada perspectiva.

Então, dentro desse aspecto, destacou-se a necessidade de trabalhar a NAU com ênfase no que cada setor que definirá como prioridade. Como a Assembleia Geral da Juventude, por exemplo, que enfatizou bastante a participação política, na dimensão e preocupação das mudanças climáticas e no próprio reconhecimento da juventude como um setor que precisa ter prioridade nas políticas públicas. Todos os segmentos trabalharam associando duas perspectivas: direitos humanos e Direito à Cidade.

Começou, assim, a construção do entendimento do papel da NAU, que deve ser incorporado pelos governos. Nesse sentido tiveram dois campos: a preocupação do Direito à Cidade, cidades justas, inclusivas, como bem comum; e a construção de ações conjuntas desde grupos de practitioners até colocar na prática a NAU, com a construção de redes e a produção de conhecimento.

Alguns países acrescentaram a questão de setores privados, na defesa de que o caminho a ser percorrido é na dimensão tecnológica, trazendo a visão das Smart Cities (“Cidades Inteligentes”). A Coreia estava defendendo fortemente essa questão, assim como muitos países desenvolvidos, que estão apostando em tecnologias. E isso faz parte de um processo de como se vai construir uma interpretação da NAU e de suas prioridades para sua implementação.

Quais foram os principais avanços da Nova Agenda Urbana?

NS: A NAU é um documento que congrega compromissos numa perspectiva de como devem ser as políticas de desenvolvimento sustentável nas cidades no próximos 20 anos. Dentro disso, o que se tem de novo é a adoção e incorporação da visão do Direito à Cidade. Há de certa maneira uma afirmação da importância dos direitos humanos dentro do território, de áreas urbanas e rurais, da questão de gênero, dos espaços públicos, da função social das cidades, da diversidade cultural, da participação política. Todos esses elementos estão dentro da dimensão do conceito de Direito à Cidade. Além disso, a questão ambiental também foi tema, criou uma relação entre a agenda urbana e a COP21.

Há algo que poderia ser considerado um retrocesso?

Não exatamente retrocesso, mas algo que não foi contemplado foi um olhar mais crítico sobre a forma como está se dando o processo de urbanização, porque se coloca o aspecto positivo desse processo principalmente na questão econômica. Faltou um olhar crítico para os fatores que levaram ao processo de urbanização, principalmente nas cidades de países em desenvolvimento, os quais apresentam formação de assentamentos informais, especulação imobiliária, gentrificação…

As propostas de consolidação do Direito à Cidade e Smart Cities podem ser consideradas opostas?

NS: O conceito de “Smart Cities” em si não é oposto ao Direito à Cidade, mas sim a visão de cidade como um espaço de oportunidades mais liberais, cidades qualificadas para serem competitivas. Não há um destaque para isso, mas os seus elementos ainda estão presentes nesta NAU. A ideia de apostar, buscar, gerar desenvolvimento sustentável está relacionada com essa qualificação das cidades, de resiliência, de infraestrutura, tecnologia.

Na negociação do texto da Nova Agenda Urbana houve uma discussão forte em relação a ter ou não ter o Direito à Cidade como elemento central, o que era inclusive a bandeira do Instituto Pólis e das organizações da Plataforma Global pelo Direito à Cidade. Como foi essa discussão?

NS: O ponto mais crítico da concepção de Direito à Cidade é ser um direito coletivo. E agora um elemento que nós ainda defendemos foi a cidade como bem comum, o que deve ser considerado como bem a ser protegido. O Direito à Cidade já era uma perspectiva da cidade como bem comum com algumas qualificações: cidades sem nenhum tipo de discriminação, com participação política, função social, espaços públicos de qualidade, diversidade cultural, igualdade de gênero e afins. Mas a conexão direta entre Direito à Cidade e tais elementos acabou não sendo colocada de forma expressa na NAU. Mesmo assim, a gente entende que esses elementos estão presentes, dentro de uma interpretação mais integrada da NAU para demonstrar que é essa concepção de uma cidade que se quer proteger e desenvolver, mas esse é um ponto crítico,  que reforçamos durante a Habitat III.

Em sua opinião, por que não houve grande cobertura da Habitat III por parte da imprensa brasileira?

NS: A questão urbana dentro de uma dimensão internacional não consegue despertar a sensibilização da sociedade em geral. A agenda ambiental é a que mais mobiliza. Como houve recentemente o processo de construção da Agenda 2030, dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, e depois a mobilização da COP21 no ano passado, que trouxe o Acordo de Paris, os esforços da cobertura midiática tem dado ênfase na questão climática.

Eu acho que no Brasil não teve tanto destaque como teve em outros momentos por conta da conjuntura política do país. A delegação brasileira compareceu sem um ministro, não teve uma autoridade máxima presente que pudesse gerar maior interesse por parte da mídia.

Mas ao meu ver o grande desafio foi conseguir um espaço próprio. A NAU é muito mais do que um capítulo do Objetivo 11 (dos ODS), ela aponta uma visão mais adequada com relação à dimensão do território do que a própria Agenda 2030 e a COP21, as quais praticamente não falam sobre cidades. O Acordo de Paris, por exemplo, de fato não aborda cidades, problemas urbanos, assentamentos.

E como foi essa representação do Brasil lá?

NS: Basicamente sem grandes destaques. A delegação oficial participou da Conferência, se posicionou e participou de alguns eventos que já estavam organizados pelos governos. Mas é importante destacar que o Brasil foi um país que participou de todo processo preparatório da Conferência, foi um dos que liderou a defesa do Direito à Cidade, o que foi importante, pois a partir disso muitos países fizeram seus pronunciamentos destacando o Direito à Cidade.

Quais foram as contribuições que o Instituto Pólis levou para a Habitat?

NS: Foi ter conseguido sistematizar a noção de Direito à Cidade e levar isso para vários espaços da Conferência. Ter conseguido criar esse diálogo de receptividade, desde os eventos organizados por nós até vários espaços que tivemos de diálogo e interlocução com algumas organizações.

Também tivemos uma reunião com a direção do Alto Comissariado de Direitos Humanos, com a relatora especial da ONU, Leilani Farha, para pensar algumas estratégias do Direito à Cidade dentro do campo dos direitos humanos. Assim fomentando, alimentando e trazendo propostas de como dar seguimento através da Plataforma Global pelo Direito à Cidade, buscando contribuir e trazer um diálogo com o que estava ocorrendo na conferência da Habitat III.

O que ficou de encaminhamento, de próximos espaços, para efetivar a NAU?

NS: Nós fomos colocando ao longo de toda Conferência as formas de implementação, implementando a perspectiva do Direito à Cidade. Defendemos que não é preciso partir de um marco zero, mas sim de propostas que já foram feitas na próprio processo da Conferência, as Policy Units, os documentos políticos preparatórios. Eles foram concebidos não só para pensar os temas, mas as formas de implementação, estratégias e quais medidas deveriam ser tomadas e até chegar a indicadores de resultados. Então no caso do Direito à Cidade existe um conjunto de propostas e ações desenvolvidas nesse documento, o qual deve ser um ponto de partida para defender ações que já poderiam ser pensadas para a implementação do direito com base do que foi estabelecido na NAU.

Um outro passo que demos, a partir de um documento que disseminamos lá, foi sobre a operacionalização do Direito à Cidade. É o documento da Plataforma Global pelo Direito à Cidade com um conjunto de experiências de projetos e políticas para a implementação do Direito à Cidade.

Uma das primeiras ações que nós vamos ter enquanto Plataforma é um mapeamento de como as organizações estão planejando, dentro de suas temáticas, promover ações mais concretas, incluindo governos locais, organizações e redes da Plataforma. Nós já temos um mapeamento embrionário de ações e experiências registrada. Então a ideia é começar a disseminar para os governos e organizações terem algumas referências, e fortalecer essa linha de capacitação e formação conjugando com a NAU.

 

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