DOSSIÊ COPA – ‘A preocupação do governo é tão grande que eles estão dispostos a sacrificar direitos’

DOSSIÊ COPA – ‘A preocupação do governo é tão grande que eles estão dispostos a sacrificar direitos’
Participação Cidadã, O que é Direito à Cidade?, Reforma Urbana, Democracia e Participação
25 de fevereiro de 2014

Foto: Silvio Caccia Bava na redação do Le Monde Diplomatique Brasil/ Crédito: Fábio Ranzani

Desde o início do ano, as contestações direcionadas à realização da Copa do Mundo de 2014 no Brasil têm se intensificado. As manifestações não cessaram e as reações da polícia têm feito a população se perguntar como serão as medidas de segurança pública durante o evento.

O Pólis entrevistou Silvio Caccia Bava, sociólogo e diretor do jornal Le Monde Diplomatique Brasil, que demonstrou preocupação com o atual cenário político e social brasileiro. “Eu tenho uma leitura de que a preocupação do governo com os eventuais movimentos que surgem durante o período da Copa é tão grande que eles estão dispostos a sacrificar direitos e a impor um tipo de “lei marcial” para garantir a ordem”, disse.

Leia abaixo a entrevista.
Pólis – O que o senhor acha do projeto do senador Jorge Viana, que obriga que todos os órgãos sejam avisados com 48 horas de antecedência sobre manifestações e que pretende tipificar o terrorismo pode trazer para os manifestantes e para a sociedade brasileira?

Silvio: O senador Jorge Viana recuou dessa posição nos últimos dias porque o governo ficou muito preocupado com a ideia da criminalização dos movimentos sociais e não dos supostos vândalos ali dentro. Tanto o próprio Jorge Viana quanto o Ministro da Justiça se pronunciaram dizendo que é preciso ter uma tipificação de um crime quando as pessoas atentam à segurança e quebram as coisas, mas não pode ser nem formação de quadrilha, que é o que todo mundo da polícia usa para enquadrar num termo mais pesado, nem terrorismo porque isso não existe, não dá pra tipificar isso nas manifestações sociais. Mas é preocupante uma posição dessas que é assumida publicamente por um petista que sempre esteve alinhado com os valores sociais. Eu tenho uma leitura de que a preocupação do governo com os eventuais movimentos que surgem durante o período da Copa é tão grande que eles estão dispostos a sacrificar direitos e a impor um tipo de “lei marcial” para garantir ordem durante a Copa, o que vai violentar direitos.

Você acha que durante a Copa do Mundo, os protestos serão semelhantes aos ocorridos na Copa das Conferações?

Silvio: A Fifa (Federação Internacional de Futebol Associado) está fazendo de tudo para complicar as coisas, né? Quer dizer, parece que vai ter um ou dois quilômetros em torno dos estádios que ambulantes não poderão vender nada a não ser que estejam autorizados pela Fifa para fazer isso. Isso já é de uma arbitrariedade monumental. Um organismo internacional que impõe condições fora dos estádios para estabelecer regras de comércio, para garantir marcas específicas… Isso é uma provocação. Na África do Sul (última sede da Copa do Mundo), por exemplo, só podia tomar Budweiser [marca de cerveja americana]. Nenhuma outra marca. Se eles repetirem isso aqui, a Fifa vai estar “cutucando com vara curta” uma população que já está perdendo a paciência.

O que o senhor acha da criação de uma tropa de choque de 10 mil homens e dos gastos de R$1,9 bilhão para os protestos na Copa?

Silvio: Olha, eu tenho medo. Eu começaria por dizer o seguinte: a surpresa de meio de junho do ano passado deixou o país em comoção. Mas depois que passaram-se dois ou três meses, ao que parece, o congresso ficou ‘autista’, se já não era, e o governo tampouco tomou providências importantes para mudar o cenário que é de insatisfação.
Se nós tivéssemos tido, por parte do governo federal, iniciativas políticas, iniciativas de investimento que buscassem atender as demandas das ruas, desde junho do ano passado, a situação da Copa não seria tão crítica. No momento em que isso não acontece, que a situação anterior se repõe, e o pessoal diz que abre a mão da Copa mas não abre mão de ‘escolas padrão Fifa’, aí existe claramente uma polarização onde a receita do governo é preparar um aparato militar para conter as manifestações. Isso não tem muito a ver com democracia. E me preocupa por causa disso.

O tratamento dado aos manifestantes, chamados de vândalos e black blocs, pode ser considerado preconceituoso? Você acha que os atos violentos se justificam em uma manifestação?

Silvio: Eu tenho acompanhado essa discussão. Primeiro, eu acho que está se construindo um personagem, o Black Bloc. Por exemplo, você pega esses dois jovens que mataram o cinegrafista. Um deles não concluiu o ensino fundamental e o outro também tem uma escolaridade muito baixa. Dizer que esses caras são portadores de uma ideologia anarquista, que eles são anticapitalistas, e que, portanto, eles são um perigo, é forçar a barra. Não é porque você usa um gorro preto e esconde a cara que você é um Black Bloc.
Essa juventude, durante toda a sua vida, morando na periferia, foi acuada pela polícia, foi intimidada, foi ameaçada, você tem aquele movimento contra o genocídio dos jovens negros. Você tem uma violência incrível praticada pelo Estado contra esses jovens da periferia gratuitamente. Quer dizer, mesmo as mortes da periferia em represália às mortes de soldados, você vai ver que é um assassinato indiscriminado. O que esses jovens estão fazendo é devolvendo essa violência para a sociedade. Não vejo motivos anticapitalistas, vejo sim que eles estão retribuindo aquilo que eles recebem. O que é péssimo porque é uma espiral de violência que não acaba mais. Mas a ideia que a imprensa está querendo sugerir de que existe uma organização, que existe uma ideologia, que existe um comando, isso não é verdade. Não tem.

O tratamento que a imprensa tem dado para a morte do cinegrafista, Santiago Andrade, tem esvaziado questões de ordem política?

Silvio: É que a morte dele foi muito midiática. Quer dizer, todo mundo viu o rojão explodir, saiu foto e vídeo. Eu acho lamentável, eu acho que realmente isso não pode acontecer e esse tipo de violência não tem lugar numa sociedade que respeite a democracia. Nós estamos tendo a democracia ameaçada com esses comportamentos. Mas o que me parece que a gente poderia levantar como hipótese é que a mídia, principalmente os grandes veículos de comunicação, está criando um ambiente de terror. Não é que esse ambiente de terror esteja sendo apresentado à sociedade. Quer dizer, a mídia está criando isso. E ela já vem criando isso há algum tempo. Você vê, por exemplo, esses programas do Datena com perseguição policial, o que é noticiado nos jornais… É impressionante, você abre o Jornal da Globo e é assassinato, é roubo, é desvio, é falcatrua. Como se não houvesse outras coisas para noticiar. Então, você tem que se perguntar: O que eles estão querendo ao criar esse clima? Porque se você fica acuado como sociedade, como população, você aceita o uso do arbítrio. Por exemplo, veja esse jovem amarrado ao poste, esse negro, na praia do Flamengo, que foi preso pelos “justiceiros do Flamengo” que é um grupo de jovens brancos que tomou a iniciativa das próprias mãos de prender o cara. Isso me faz lembrar a Aurora Dourada, da Grécia, que é um grupo fascista que começou a patrulhar as ruas e que davam comida para os gregos em dificuldades e ‘davam um pau’ nos imigrantes nas ruas. Quer dizer, esse tipo de grupo como esses ‘justiceiros do Flamengo’ é algo novo, não tinha. Nesse sentido, eu acho que está havendo uma exacerbação de conflitos, uma polarização e radicalização que é puxada pela extrema direita. Os prognósticos não são muito bons. Essa situação precisa encontrar uma maneira de ser enfrentada democraticamente. O que quer dizer isso? Quer dizer que a polícia não pode matar impunemente, o que tem acontecido. Quer dizer que aqueles que cometem crimes têm de ir pra cadeia.

Partidos estão sendo acusados de aliciar pessoas a participarem de manifestações. O senhor acha que isso seria possível?

Silvio: Olha, eles estão tentando incriminar o PSOL e o PSTU. Esse advogado [que incriminou os partidos] tem antecedentes muito complicados no currículo dele. Ele já tinha, vamos dizer assim, um contencioso com o Freixo [Marcelo, deputado estadual do PSOL] de outros casos anteriores. Quando ele insinua, ele não prova nada, e a imprensa agarra isso, também sem provar nada… Eu acho que é pra desviar o foco da história. Quando você olha o perfil dos dois jovens que estão sendo acusados, eu não vejo vinculação partidária. Ninguém mostrou os outros que ganharam o dinheiro. Tem algum depoimento de alguém que diz ‘Recebi R$150 reais pra poder quebrar e radicalizar as coisas na passeata?’. Não vi. A polícia também não identificou outros. Então, eu acho que esse advogado deveria ser processado para provar o que ele está dizendo.

Uma estratégia ainda não descartada pelo governo brasileiro é a criação de “tribunais especiais” para julgar e punir supostos delitos relacionados ao torneio. O que você acha sobre esse tipo de recurso?

Silvio: Tribunais de exceção não podem acontecer. Nós temos uma legislação em pé, nós temos uma justiça funcionando, do jeito que é, mas é ela. O que sugere isso é um tipo de punição fast-track para poder conter outras manifestações. Eu acho totalmente inconstitucional, ilegal e arbitrário. Trata o cidadão como criminoso.

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