David Harvey: A luta pelo direito à cidade é uma luta contra o capitalismo
Participação Cidadã, O que é Direito à Cidade?, Reforma Urbana, Democracia e Participação, Institucional
5 de fevereiro de 2009
Na manhã calorosa de 29 de fevereiro, o geógrafo David Harvey realizou uma conferência sobre o direito à cidade na Tenda da Reforma Urbana que estava lotada por integrantes do Fórum Nacional de Reforma Urbana, como representantes dos movimentos populares e de diferentes categorias profissionais. Professores, pesquisadores e estudantes também estavam presentes, em especial das áreas relacionadas à geografia.Harvey começou afirmando que o direito à cidade é o direito de transformá-las em algo radicalmente diferente: o de participar dos processos de transformação das cidades que normalmente são construídas segundo os interesses do capital em detrimento das pessoas. A luta pelo direito à cidade é uma luta contra o capital. Há um estreito relacionamento entre o capital e os processos de construção das cidades.Desde 1970 houve 397 crises financeiras no mundo. Muitas delas tem sua base nos processos de urbanização. Em 1997, uma crise nos Estados Unidos fez com que 300 bancos entrassem em falência. Eram organizações que especulavam no mercado imobiliário. Nos últimos 30 anos todas as crises financeiras tiveram sua origem nas especulações imobiliárias.
Para Harvey, o que assistimos hoje é uma crise urbana. Na década de 90, o superávit financeiro foi utilizado na exploração da mão de obra e na obtenção de meios de produção. Há sempre produção de superávits de capitais que financiam a expansão do capitalismo. Há sempre o problema de encontrar formas lucrativas para aplicar esses excedentes de capital, frutos do crescimento econômico. Esses superávits são usados em re-investimentos induzidos pela concorrência. Hoje, a China impulsiona o crescimento do capitalismo no mundo. Desde 1970 há menos investimentos em novos meios de produção e mais investimentos em imóveis e terras. A valorização desses ativos, em especial o encarecimento dos imóveis urbanos, assegura ganhos de capital.
Esse processo interdita a efetivação do direito à cidade, principalmente para os mais pobres que são expulsos para locais distantes, pois não possuem meios para acessar os melhores espaços. A partir da década de 70, o neoliberalismo provocou depressões salariais que aprofundaram esse processo de interdição do direito à cidade. Porém, o simples aumento dos ganhos salariais no interior da lógica do capital não resolve o problema. Essa dinâmica de investimentos de capitais na produção e comercialização de espaços urbanos e a conformação daquela “economia da dívida” revelam a crescente mercantilização da cidade que desembocou na crise global atual. Os impactos dessa crise estão sendo profundamente desiguais. As execuções hipotecárias causadas por inadimplências afetam principalmente os mais pobres que vivem nas partes mais precárias e antigas das cidades estadunidenses.Harvey cita um mapa da cidade de Cleveland, nos Estados Unidos, que se encontra no site da BBC. Esse mapa mostra a perfeita coincidência das áreas onde se concentram as execuções hipotecárias e os locais de moradia da população afro-americana de Cleveland. Essa população é a maioria dentre os 2 milhões de norte-americanos que perderam suas casas com a crise. Segundo Harvey, a crise atual é um Katrina financeiro. Como o furacão que arrasou New Orleans em 2005 e afetou principalmente os bairros mais pobres, os impactos da crise urbana e financeira atual recaem sobre os grupos sociais mais vulneráveis.Contraditoriamente, a injeção de recursos públicos é destinada à salvar o sistema financeiro e resgatar os agentes do capital e não para garantir os direitos sociais prejudicados pelos efeitos da crise. Em muitos locais, as casas hipotecadas que foram confiscadas são utilizadas em pacotes financeiros e não em políticas públicas voltadas para garantir o direito á cidade e à moradia digna.
Outro problema levantado por Harvey é ligado ao encarecimento dos custos de deslocamento, por meio de automóveis individuais movidos com combustíveis fósseis, por causa da construção de novas moradias em locais distantes da cidade. Além de problemas econômicos, esse modo de produção eleva a emissão de gases de efeito estufa que agravam o aquecimento global e as mudanças climáticas. No Brasil, esse alerta feito por Harvey deve ser levado em conta para criticarmos a disseminação de loteamentos fechados e a chamada “urbanização dispersa” que induz a produção de espaços urbanos de baixa densidade em áreas distantes das cidades.
Diante desse quadro, é preciso empreender novas lutas pelo direito à cidade. Para Harvey, as crises sistêmicas atuais não representam o fim do neoliberalismo. Os governos atuam para proteger as instituições financeiras a qualquer custo. Não atuam para efetivar direitos e garantir o bem estar das pessoas. Durante a crise do México, o governo norte-americano ajudou o país a impedir a falência dos bancos por meio de empréstimos e imposição de políticas de austeridade nos gastos sociais. Diante do dilema de ajudar os bancos ou as pessoas que perderam suas casas, os recursos públicos são usados para ajudar as instituições financeiras. Para Harvey, esses recursos deveriam ser usados para criar um banco de desenvolvimento urbano, voltado para financiar políticas urbanas e habitacionais que fortaleçam os direitos a cidades justas, democráticas e sustentáveis e moradias dignas.