MANIFESTAÇÕES 2013 – Artigo do Le Monde Diplomatique Brasil ‘O Junho de 2013’
Do Le Monde Diplomatique Brasil
por Luís Brasilino, Renato Godoy, Cristiano Navarro
A luta pela revogação do aumento das tarifas de transporte gerou uma revolta nacional que passou a ditar os rumos da agenda pública. A partir da vitória na questão do preço da passagem, o movimento ganhou novas e difusas pautas, disputadas pela esquerda e a direita. Os governos tentam acalmar os movimentos
A maior mobilização no Brasil desde 1992 permanece em curso e em disputa. A primeira reivindicação, pontual e popular, a revogação do aumento das tarifas do transporte, obteve êxito. E, a partir dessa conquista, o movimento explodiu, apresentando diversas bandeiras. Com pautas difusas, por vezes contraditórias, e sem organização centralizada, as demandas aclamadas nas ruas impuseram uma nova agenda ao poder público. Acuado e ainda tentando compreender a dinâmica dos protestos, este acenou com mais verbas para a educação, saúde, mobilidade urbana e até a possibilidade de uma reforma política.
O Junho de 2013 já é histórico. Milhões de brasileiros foram às ruas das principais cidades do país após décadas de apatia social. Isso sem a convocação de figuras públicas ou entidades tradicionais dos movimentos sociais – e contra as orientações da grande imprensa, que insistia em rotular todos os manifestantes de vândalos e baderneiros no início da revolta, clamando por uma repressão mais dura da polícia. A onda despertou tanto interesse quanto confusão entre a academia e as organizações sociais, em todo o espectro político.
O Movimento Passe Livre (MPL), que chamou as primeiras manifestações contra o aumento da passagem, sobretudo pelas redes sociais, fortaleceu-se durante o processo e obteve amplas vitórias políticas. Porém, não é plausível dizer que a organização liderou sozinha as manifestações. Situado no campo da esquerda, o MPL chegou a divulgar notas condenando a aparição de pautas conservadoras nos atos por ele convocados. Ao passo que os maiores veículos de comunicação começaram a apoiar os protestos, foram surgindo manifestações contra a presidente Dilma Rousseff, contra o aborto e pela redução da maioridade penal, e cresceu a hostilidade contra organizações de esquerda nos atos.
Mas, afinal, qual é o sentido dessa irrupção das ruas na agenda nacional?
Origem da revolta
Interpretar os motivos e quais estratos sociais estão envolvidos na onda de manifestações tem sido o maior desafio. A tarefa torna-se mais difícil pela rapidez dos acontecimentos e pelo caráter difuso das reivindicações.
A análise de membros do MPL dá conta de que a quantidade de pessoas mobilizadas é, de fato, surpreendente, mas não ocorreu por acaso. Paíque Duques, do MPL de Brasília, lembra que o movimento já tem oito anos de história e, desde então, tem levado o tema da mobilidade urbana e a luta pela tarifa zero às ruas. “Os protestos são fruto de um processo longo e bem anterior de mobilizações de rua, nas quais o transporte público foi a reivindicação principal. Essa luta tem um lastro social que é a mobilidade urbana nas cidades. Não é uma luta contra todas as opressões genéricas. Os protestos obtiveram vitórias imediatas com a redução da tarifa e vitórias de longo prazo com o debate público sobre a tarifa zero”, atesta.
O dirigente do MST João Pedro Stedile concorda que a origem da revolta pode ter sido o modelo urbano vigente no Brasil. “É muito positivo o que está acontecendo no Brasil. Contudo, isso está sendo mobilizado por uma juventude de classe média baixa que nasceu no neoliberalismo e não tem experiência política. Trata-se de um substrato urbano social que convive com uma crise urbana gravíssima, em todas as cidades brasileiras, provocada por esse estágio do capitalismo internacional, que trouxe a especulação imobiliária, o aumento das rendas, que financiou automóveis e encheu nossas ruas de carros”, observa.
Já Rui Falcão, presidente do PT, prefere destacar o clima democrático que o país vive, sobretudo nos últimos dez anos, como fator que impulsiona as grandes mobilizações. “Hoje as pessoas sabem que podem ir às ruas com suas bandeiras, com suas reivindicações, sem nenhum risco de repressão. Ao contrário do que ocorria anteriormente, como na greve dos petroleiros [em 1995], reprimida duramente pelo Exército, numa maneira de o governo da ocasião [FHC] intimidar o movimento sindical”, diz.
No entanto, para o deputado federal e presidente do Psol Ivan Valente, as mobilizações marcam o fim de um ciclo. O descontentamento com o modelo de representatividade política é tão grande que a crise resvala até mesmo nos partidos situados à esquerda do PT, segundo o parlamentar, ainda que o caráter geral do movimento seja progressista. “Há uma insatisfação com a ideia de que o povo permanece quieto sem mudanças estruturais, apenas com estímulo ao consumo, crédito e as bolsas. Há uma indignação acumulada que teve na alta das tarifas de transporte um detonador, que transbordou para uma movimentação muito grande que chacoalha as estruturas de poder”, observa.
O historiador Lincoln Secco, da Universidade de São Paulo (USP), ressalta a violência policial ocorrida em São Paulo como um elemento importante para entender a disseminação da revolta pelo país. “Os protestos começaram com uma pauta única, embora de enorme abrangência social: as tarifas de transporte público. Depois da repressão policial em São Paulo, o movimento atingiu o ápice entre 17 e 20 de junho. Foram esses os dias cruciais, pois o motivo inicial das mobilizações foi ultrapassado por uma agenda ampla ditada pela grande imprensa. Como isso se deu? Não foi somente a ação de pequenos grupos nas redes sociais. O fato é que nos últimos dez anos a grande imprensa martela diariamente parte dos slogans que agora aparecem nas ruas: condenação seletiva da corrupção, contra gastos públicos e impostos etc.”, aponta.
Mobilidade, crise urbana, clima democrático, fim de um ciclo, violência policial… Mais do que divergentes, esses elementos na realidade se somam para explicar as motivações de uma revolta em grande medida espontânea e multifacetada. Pablo Ortellado, professor de Gestão em Políticas Públicas da USP e que acompanha o MPL desde sua fundação, aponta que o perfil dos manifestantes na capital paulista durante os dias de protesto foi se alterando. “Primeiro, houve uma mobilização contra o aumento da passagem, que levava muita gente com foco na tarifa e tinha um perfil de juventude com diversidade de classe social. Depois, com a entrada da mídia, pode-se observar um perfil de uma classe média alta despolitizada”, constata.
Investida da direita
Inicialmente, os grandes veículos de comunicação deram às manifestações sua cobertura habitual: enfoque nos transtornos para as cidades, especialmente o trânsito, e nos confrontos com a polícia. Após a forte repressão a manifestantes em São Paulo, no dia 13 de junho, e a reação indignada da população, o tom da cobertura mudou. A mídia corporativa assumiu seu papel de centralizador das forças conservadoras, passou a ressaltar o caráter pacífico dos atos e a disputar a pauta do movimento. Reivindicações normalmente encampadas pela direita começaram a surgir nas manifestações. Até mesmo pequenos grupos de extrema direita marcaram presença em atos na cidade de São Paulo e provocaram e agrediram militantes de esquerda.
Para Paíque Duques, os setores da direita tentam criar um bloco conservador com disposição para ir às ruas. Mas até o momento não está claro se esse plano obteve êxito. “A direita sempre vai tentar dar um golpe nas mobilizações. Eles apostaram que o fariam deixando de criminalizar o movimento, tentando tomar o rumo das manifestações e alterando suas pautas. Mas, como anteriormente a direita já havia criminalizado o movimento, o apoio deles não teve a repercussão esperada e isso acordou as organizações sociais de esquerda. Se eles não tiveram uma vitória plena, também não saíram derrotados”, conclui.
Lincoln Secco acredita que a imprensa corporativa e o pensamento de direita conseguiram, sim, mudar o caráter das manifestações. “Tanto a extrema direita, que é minoritária, quanto a esquerda não seriam capazes de dar ao movimento a abrangência nacional que ele teve. As redes sociais foram importantes, mas quem fornece o conteúdo do ‘pensamento político’ é o capital monopolista investido nos meios de comunicação”, explica.
O sociólogo Ruy Braga, da USP, também considera bem-sucedida a investida da mídia sobre os protestos. “A mídia é um partido político e, portanto, age conforme sua própria análise tática. Por um lado, os grandes veículos de comunicação de massa, em especial a Rede Globo, sabem que devem pautar o movimento, isto é, direcioná-lo para demandas anódinas ou claramente conservadoras. Até o momento, o tema preferido foi a luta contra a ‘corrupção’. Por outro lado, os veículos de massa temem que o atual estado de agitação social se transforme em um levante popular incontrolável. Daí toda a agitação antipartido feita pela mídia até o momento. Ou seja, eles buscam estimular e ao mesmo tempo moderar a autoatividade das massas. Funcionou até agora. Mas trata-se de um jogo muito perigoso”, analisa.
“Sem partido”
Até o momento, a manobra mais bem-sucedida da grande mídia foi conseguir, por meio da pregação antipartido, jogar boa parte dos manifestantes contra as organizações de esquerda, especialmente em São Paulo. Segundo o professor Valério Arcary, do Instituto Federal de São Paulo e membro do PSTU, a rejeição aos partidos é uma confusão gerada pela explosão da insatisfação contra o modelo político. “É uma geração que conhece um único governo nacional: o do PT. Para a grande maioria dessa geração, essa é aprimeira luta de sua vida. A esquerda é associada ao PT, e o PT, à corrupção. O repúdio ao sistema político, às instituições que mantêm a ordem capitalista, é indiferenciado. Muitos não distinguem, dentro da esquerda, as forças que apoiam o governo, como o PCdoB e o PT, e aqueles que são oposição de esquerda, como o Psol e o PSTU”, avalia.
Para Gilberto Cervinski, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), o repúdio às organizações partidárias é perigoso e serve aos interesses de uma direita autoritária. “A última vez que se levantou a bandeira do ‘sem partido’ foi em 1964, às vésperas do golpe militar. E essa bandeira está sendo levantada pela direita, pelos grandes meios de comunicação e pelos setores empresariais”, pontua.
Nos atos das maiores cidades do país, a repulsa aos partidos políticos se deu em contraposição aos símbolos nacionais, como a bandeira e o hino. Dizeres como “Meu partido é o Brasil” e menções ao orgulho de ser brasileiro deram o tom das manifestações. Na visão de Pablo Ortellado, essa exaltação, no entanto, representa mais uma despolitização do que um ufanismo autoritário semelhante ao promovido pela ditadura civil-militar. “A bandeira é resultado de uma mobilização despolitizada que manifesta certo civismo e amor à coisa pública. Eu vi exatamente o mesmo fenômeno na Argentina, em 2001. Os grupos nacionalistas estão se aproveitando para se enfiar no movimento, mas não acho que seja o nacionalismo que mova as pessoas”, opina.
Blindagem rompida
De seu lado as organizações de esquerda, demoraram dez dias após a intensificação das manifestações para começar a costurar uma plataforma unitária, que pautasse os movimentos nas ruas com suas bandeiras. Uma reunião preparatória no dia 21 de junho mobilizou praticamente todos os partidos, sindicatos e movimentos sociais da esquerda brasileira, do PSB ao PSTU. No dia 25, as 77 organizações reunidas definiram 11 de julho como dia nacional de lutas, com paralisações em todo o país, e aprovaram uma plataforma unitária de reivindicações.
As propostas que serão levadas às ruas são: 10% do PIB para educação, investimentos em saúde, redução da jornada de trabalho para quarenta horas, transporte público de qualidade, reforma agrária, fim do fator previdenciário, reforma política, reforma urbana, democratização dos meios de comunicação, contra a PEC 4.330/04 (que amplia a terceirização) e contra os leilões do petróleo.
João Pedro Stedile compara os prováveis desfechos desse movimento maciço com experiências de outros países. “O problema é que essa juventude não tem projeto. É tão somente uma revolta, uma indignação. Eles não têm vínculos partidários nenhum e não sabem aonde isso vai chegar. Isso pode dar em Espanha, onde a direita capitaliza. Pode dar em Argentina, como na revolta de 2001, ou pode dar em Grécia, que é um impasse permanente. Podemos também encontrar uma saída à brasileira”, sugere.
Nos próximos meses, talvez anos, o movimento iniciado neste junho de 2013 ainda vai passar por muitas idas e vindas, avanços e recuos, mas esses dias de luta já têm um resultado simbólico: o resgate da força das ruas. Segundo Marcos Nobre, filósofo da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o sistema político brasileiro criou, desde a redemocratização, mecanismos de blindagem contra a pressão das forças sociais. Esse processo, chamado por ele de “peemedebismo”, tem como eixo central o acordo entre as diferentes forças políticas no Congresso para se fechar diante de demandas da sociedade.
Esse sistema político se tornou mais hermético, para Nobre, quando a principal força historicamente contrária ao peemedebismo, o PT, promoveu uma aliança com o PMDB, após o escândalo do mensalão em 2005. Tal composição veio “corrigir” falhas do sistema que permitiram a interferência de pressões populares, como na queda de Fernando Collor, em 1992. E é esse arranjo político que vigora no país que está sendo questionado nas ruas. “A blindagem, que parecia tão inexpugnável, foi rompida com os protestos. Seu rompimento dependia de o povo ir às ruas”, acredita.
A postura do Congresso e de governos de diversas esferas nas últimas semanas de junho corrobora a tese de Nobre. Em uma só noite o Legislativo Federal derrubou a PEC 37, aprovou a destinação de royalties do petróleo para a educação e a saúde e a tipificação do crime de corrupção como hediondo. Em um efeito dominó, governos estaduais e municipais promoveram quedas de tarifas no transporte público, direito de passe livre para estudantes, congelamento de preços de pedágio e energia.
As mobilizações pela redução das tarifas reintroduziram estratégias de luta nas ruas até então abandonadas no país. Com a força de um tsunami, o povo trocou abaixo-assinados, lobbiese petições on-line por marchas, cartazes, pedras e pichações em disputa física pelos rumos da sociedade.
Luís Brasilino, jornalista e editor do Le Monde Diplomatique Brasil.
Renato Godoy, jornalista
Cristiano Navarro, jornalista e diretor do documentário “À sombra de um delírio verde”.
Ilustração: Reuters / Sergio Moraes
Anterior / Próximo